quarta-feira, setembro 26, 2007

Só não podemos abortar o debate

No próximo dia 27 de Setembro a União Nacional de Estudantes, UNE, coloca na rua a campanha nacional "Aborto seguro e legal! Uma responsabilidade do Estado com a mulher". Podemos dizer que 2007 foi o ano em que esse debate mais ganhou repercussão no país. Iniciou com o Ministro da Saúde José Gomes Temporão defendeu que a prática do aborto é uma questão de saúde pública. O tema, com certeza, gera muita polêmica. Mas quais são as razões históricas por trás da proibição, ou não, do aborto? Quais as razões científicas e religiosas? Quando uma vida começa? Para isso eu convido você, caro leitor(a) para esse instante de reflexão.

O aborto ao longo da história

Um dos pais da Filosofia, Platão, em seu livro República defendeu a interrupção da gravidez em todas as mulheres que engravidassem após os 40 anos. Por trás dessa afirmação estava a concepção de que os casais deveriam gerar filhos para o Estado durante um determinado período. Portanto quando a mulher chegasse a uma idade avançada essa função cessava e a indicação era clara: o aborto.

As ideias de Platão perduraram por muitos séculos e chegaram a nortear a ciência da Roma Antiga, onde a interrupção da gravidez era ética e moralmente aceitável. Se alguém se opusesse ao aborto era o pai que não queria ser privado de um filho. A grande divergência estava no período em que isso poderia acontecer. Aristoteles definia o início da vida com o primeiro movimento que o feto fazia. Para ele isso acontecia no 40° dia para os meninos e no 90° dia para as meninas (pois é ele achava que as mulheres se desenvolviam mais lentamente). Como não havia como determinar o sexo do feto ele optou pela segurança e defendia que o feto só poderia ser abortado até o 40° dia de gestação.

A tese aristotélica influenciou o pensamento da igreja católica até 1588 quando o Papa Sixto V condenou a interrupção da gravidez. Seu sucessor Gregório XIV voltou atrás e determinou que o embrião não formado não pode ser considerado ser humano. Esse conceito perdurou até 1869 quando Pio IX propôs que cientistas e teológos definissem o começo da vida. Como não chegaram a um consenso o Papa, precavido, resolveu não arriscar e definiu a hipótese mais precoce, o encontro do espermatozóide com o óvulo. Portanto o conceito de vida da igreja católica hoje é baseado na precaução de Pio IX.


E para a ciência quando a vida começa?

Existem 5 respostas para essa pergunta:

  • Visão Genética: A vida começa quando o espermatozóide e o óvulo fundem-se criando um conjunto genético único. Essa é a opinião da Igreja Católica hoje.
  • Visão Embriológica: O começo da vida da-se na 3ª semana de gravidez, quando é estabelecida a individualidade humana. Isso porque até 12 dias após a fecundação o embrião é capaz de gerar dois ou mais indivíduos. Essa é a posição defendida por quem defende a pílula do dia seguinte.
  • Visão Neurológica: Defende o mesmo princípio para a determinação da morte, ou seja, a atividade cerebral. Essa data não é consensual. Uns defendem que é na 8ª semana onde o feto tem um circuito básico de neurônios que será a base do sistema nervoso, outros na 20ª semana que é quando a mãe sente os movimentos do feto.
  • Visão Ecológica: É a capacidade de sobreviver fora da útero materno. Isso é determinado pelo pleno funcionamento dos pulmões, o que acontece entre a 20° e 24° semana de gravidez. Esse é o limite que a Suprema Corte americana baseou-se para a autorização do aborto nos Estados Unidos.
  • Visão Metabólica: Defende que não existe um começo. O óvulo e os espermatozóides são tão vivos quanto uma pessoa (o que significaria que masturbação é genocídio). Defendem, também, que o desenvolvimento de uma criança é um processo contínuo e sem um marco inaugural.

Hoje a ciência é incapaz de determinar o início da vida. Inclusive existem divergência sobre o que é vida. Por exemplo, essa fotinho bonitinha aí do lado é o HIV (vírus que causa a AIDS). Ele tem cerca de 9 mil pares de genes. Não consegue viver fora de uma célula. Mas você duvida que ele esteja vivo? Bom aqui fica uma pergunta que é retórica. Por que quem está com AIDS acredita que esse monte de genes cercados por uma capa de proteína é bastante vivo.

Então podemos eliminar uma vida do planeta Terra por que ela está nos atingindo? Essa resposta já foi sim no caso da varíola, que foi o primeiro ser vivo extinto por decisão coletiva da humanidade. Bom não temos nenhuma dúvida, muito vindo pelo instinto de sobrevivência da espécie, de que é importante combatermos uma doença que é mortal (para nós humanos). Se olhassemos a nossa evolução, do ponto de vista ecológico, teríamos que ter uma ação muito drástica para a diminuição da população humana no planeta já que somos os maiores consumidores dos bens naturais. E o planeta, como já sabemos, mostra sinais claros de que não aguenta mais nossa presença aqui.

Ainda há um fator de deve ser observado. Cerca de 25% das gravidezes termina em aborto espontâneo e muitas vezes as futuras mães nem sabem disso. A Organização Mundial de Saúde, OMS, só considera tecnicamente aborto se o feto tiver, pelo menos, 500 gramas o que só é alcançado na 20° semana de gestação.


E o que dizem as religiões?
A religião mais radical contra o aborto é a católica. Para o Papa Bento XVI "negar o dom da vida, de suprimir ou manipular a vida que nasce é contrário ao amor humano", ou seja, o catolicismo condena, também, o uso de células tronco embrionárias (mesmo que as pesquisas possam salvar vidas no futuro) e não permite o uso de métodos anti concepcionais (a não ser o celibato). Praticar aborto é considerado crime passível de excomunhão. Entretanto a Igreja Católica não tem se demonstrado tão pró-vida em outras situações:
  • A Igreja defende a legitimidade da "guerra justa" em casos de tirania irremovível de outra forma (princípio do mal menor).
  • Em alguns países, aceita a pena de morte.
  • A Igreja patrocinou a Inquisição, com a eliminação física de pessoas tidas como hereges da fé.
  • Na colonização, a Igreja tolerou e participou do genocídio em relação aos índios, abençoou a escravidão dos negros que foram maltratados as vezes até a morte.
No Judaísmo "a vida começa apenas no 40° dia, quando acreditamos que o feto começa a adquirir forma humana". Essa afirmação é do rabino paulista Shamai. Desta forma o judaísmo permite pesquisas de células-tronco e o aborto quando a gravidez envolve risco de vida para mãe ou foi resultado de estupro.

O Islamismo considera o início da vida quando a alma é soprada por Alá no feto. Isso acontece cerca de 120 dias depois da fecundação.

Para o Budismo a vida é um processo ininterrupto. Ela está presente em todo o lugar. Existem correntes que defendem e outras que não defendem o aborto.

Já o Hinduísmo crê que a alma e a matéria se encontram na fecundação e é aí que começa a vida. Em geral opõem-se a gravidez.


O aborto pelo mundo
O mapa ao lado mostra o quadro dos países onde há legislação sobre o aborto. Nele podemos perceber que a grande parte dos países desenvolvidos tem o aborto legalizado. Os países mais pobres e subdesenvolvidos. Isso já diz muita coisa sobre a questão política do aborto. Quanto Marx e Engels escrevem "A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado" eles colocam que a mudança de uma sociedade matriarcal para uma patriarcal dá-se quando se cria o conceito de propriedade privada. Ora desde a Roma Antiga, como falei no começo desse texto, o pai poderia opor-se ao aborto por ser seu direito possuir um filho (no caso masculino mesmo) pois a propriedade era repassada de pai para filho. Até hoje, na China, as família preferem o nascimento de filhos homens, pois assim não terão que pagar dote na hora do casamento. Essa tradição ocasiona muitos casos de infanticídios de meninas.

Abaixo veja as legendas do mapa ao lado:

Legal

██ Legal em caso de estupro, risco de vida da mãe, problemas de saúde física ou mental, fatores socioeconômicos e/ou defeitos do feto

██ Ilegal exceto em casos de estupro, risco de vida para a mãe, problemas de saúde física ou mental e/ou defeitos do feto

██ Ilegal exceto em caso de estupro, risco de vida para a mães e/ou problemas de saúde física ou mental

██ Ilegal exceto em casos de risco de vida para a mãe, problemas de saúde física e/ou mental

██ Ilegal sem exceções

██ Varia de cada região do país

██ Não há informações

Linhas verticais (várias cores): Ilegal mas tolerado

Questões sobre o aborto
O aborto é um fato. Isso é inegável. Pesquisas apontam que morrem cerca de 67 mil mulheres por ano vítimas de abortos clandestinos. No Brasil a média de morte materna é de 156 mulheres para cada 100 mil nascimentos. O aborto é considerado uma das principais causas de mortalidade materna. Cerca de 60% dos leitos de ginecologia no Brasil são ocupados por mulheres com sequelas de aborto.

O aborto não escolhe classe social. Mulheres com condições financeiras fazem aborto em clínicas, mesmo que clandestinas e com isso conseguem minimizar os riscos. Entrentanto para as mulheres pobres sobra apenas aborteiras, chás, agulhas de croché, etc.. o que muitas vezes traz como consequência infecções e até mesmo risco de vida.

Com a legalização o aborto irá aumentar. Isso não é verdade. Na Holanda onde o aborto é legalizado a incidência é de 0,5% em cada 100 mulheres, no Brasil é de 3,5% em cada 100 e isso é só uma projeção, o número pode ser maior.

Minha modesta conclusão
Esse é um dos assuntos que mais causa polêmica hoje no Brasil. Esconder a situação não está resolvendo o problema. Um dos pilares de nossa democracia é a separação do Estado e da Religião. Sob esse ponto de vista o aborto deve ser encarado sob o aspecto da sociologia, da saúde e da ciência.

O Estado deve ter um papel fundamental na definição das políticas de planejamento familiar, facilitar o acesso aos métodos contraceptivos às famílias de baixa renda e investirmos fortemente em educação sexual nas escolas para combater a gravidez na adolescência.

Mas o que, com certeza, não podemos fazer é abortar essa discussão. Esse é o pior crime.